Creio que a maioria dos leitores concordará com uma coisa: nossa memória é muito, muito volátil. Não é culpa exclusiva nossa, já que todo dia somos bombardeados por novas notícias que, infelizmente, são em sua maioria más.
Porém há alguns fatos que não se dissipam tão fácil. As guerras pelo mundo, as grandes tragédias naturais, as doenças que se espalham em todos os continentes. Há também os bons fatos que ficam em nossos corações como um lembrete sobre a esperança: o fim das guerras, os voluntários que se sacrificam em prol das vítimas de tragédias, os homens e mulheres que se arriscam para achar as curas para todo tipo de doença.
Só que há algumas coisas que nos marcam por causa da nossa compaixão. Somos frios na maior parte do tempo (já que a morte se tornou algo vendido pelos jornais do mundo), mas quando o problema atinge famílias, pessoas de bem, somos atingidos por uma comoção incontrolável.
No dia 12 de agosto de 2000, um acidente gerou a explosão de um torpedo no submarino nuclear Kursk (K-141) da Marinha Russa. Os motivos da trágica explosão ficaram em segredo, a missão de resgate foi tardia e o governo russo (do recém-empossado Vladimir Putin) se recusou a receber ajuda estrangeira por tempo suficiente para que os 23 sobreviventes (de uma tripulação de 118) não tivessem mais condições de resgate. Foi uma tragédia que fragmentou famílias, abalou a confiança da Marinha da Rússia e pôs – mesmo por pouco tempo – a confiança no governo de Putin em xeque.
Os desdobramentos estão acessíveis a todos que querem se aprofundar no assunto. Contudo, um ponto que nunca foi abordado pelas grandes mídias é o resultado dessa tragédia na vida das famílias. O que sobrou para mães, filhos, irmãos e todos os demais membros das famílias dessas vítimas?
Com o intuito de tornar esses marinheiros em algo além de simples notícia, quase números que podem ser esquecidos, fomos presenteados com um ótimo filme sobre a vida e o sacrifício desses homens: Kursk – A Última Missão.
A história não contada.
Esse é um ponto comum em filmes sobre tripulações de navegantes, ainda que a carga emocional seja maior por sabermos, na condição de espectadores, os resultados finais da trama.
É muito ruim conhecer os pormenores da vidas dos homens que se tornariam mártires de sua Marinha e heróis para suas famílias.
A narrativa foca em um grupo de tripulantes mais próximos que se unem ainda mais em função do casamento de um amigo, também marinheiro do Kursk. Nesse ponto, podemos contemplar algo que notícia nenhuma jamais focou: eles são apenas homens com sonhos, tristezas, pretensões e características tão comuns quanto qualquer um de nós. Não se trata de guerreiros de elite, homens cuja fixação pela profissão os transforme em quase máquinas. São, na verdade, apenas indivíduos que desejam pagar suas dívidas, viver decentemente e ter o máximo de tempo ao lado das pessoas que amam.
Por que foram heróis?
Um acidente do porte do Kursk é muito mais que um simples afundamento de embarcação. Estamos falando de toneladas de explosivos na forma de torpedos e ogivas, além de reatores nucleares que podem contaminar uma área gigantesca caso sejam destruídos.
Uma parte dos tripulantes remanescentes do acidente inicial, provocado pela explosão de um torpedo, ficou com um dilema: evitar um acidente à altura de Chernobyl ou salvar a própria vida. Como a própria História nos mostrou, eles optaram pelo sacrifício.
E o que levaria esses homens a optar pela perda da vida? Na verdade, não foi essa a opção inicial. Eles lutaram bravamente pela continuidade da vida e por respeito aos amigos que se foram no cumprimento do dever. Havia esperança de resgate, havia esperança na saída daquele túmulo metálico. Todavia, seus esforços se deram sobretudo por suas famílias, seu país, a honra e a execução daquilo para que foram treinados. Apesar de serem frágeis como qualquer um de nós, eles decidiram fazer o que era correto, ainda que seus instintos gritassem pela busca de uma fuga.
As famílias.
Isso está muito bem retratado no longa. As famílias – tal como ocorre em desastres aéreos – são as pessoas que menos sabem da real situação. Diante da falta de informação e dos receios pelas piores notícias, um clima de agonia se forma e espalha muito rápido. É possível sentir a dor dos parentes e amigos, principalmente por se tratar de um grupo muito coeso, onde todos se conhecem e se ajudam.
Destaque especial para a intepretação sólida e irretocável de Léa Seydoux, a jovem Tanya, esposa de Mikhail Averin. Ela deu vida ao lamento e dor de todos os familiares dos homens aprisionados no Kursk.
Segredos.
É notório que o resgate demorou mais do que o devido. Os vários fatores que levaram a essa demora estão a burocracia, o desconhecimento das reais proporções do acidente, a descoberta tardia da existência de sobreviventes e a famigerada temeridade quanto a expor segredos militares.
Os entraves citados foram suficientes para pôr em desespero dezenas de famílias. Ao ver as cenas onde os familiares vão gradualmente compreendendo a dimensão do problema somos abraçados por uma carga emocional forte, muito além da simples pena, já que ninguém gostaria de estar no lugar desses parentes.
Erros.
Uma longa sequência de erros resultou na morte dos poucos sobreviventes do Kursk. A demora, a falta de equipamentos para o resgaste, a recusa ao suporte oferecido por potências estrangeiras… tudo colaborou para a tragédia absoluta.
Neste longa é possível acompanhar – e sentir – esse processo lento cujos efeitos tardios foram ineficientes. O orgulho, o excesso de zelo e o medo de mais um escândalo (Chernobyl não sairá da memória do mundo jamais) transformaram um acidente em um crime, já que os últimos sobreviventes foram entregues à própria sorte para definharem sem ar, esperança e respeito. A própria Marinha russa os abandonou ao expô-los ao perigo sem que tivesse condições reais de resgatá-los, mas a pior disso foi o total descaso e as mentiras diante da inevitável morte dos marinheiros. A Rússia se negou a aceitar ajuda por medo de ter “segredos” militares revelados aos estrangeiros que ofertaram auxílio.
História x Ficção
Apesar de se basear na história real, esse filme não apresenta total fidelidade aos fatos, ainda que sua narrativa esteja correta na maior parte.
Por se tratar de um filme com menos de duas horas, torna-se óbvio que muitas situações e fatos terão que ser omitidos.
Quando assistimos ao filme, a impressão inicial é que o submarino sofre o acidente pouco após sua partida. Entretanto, o Kursk estava em alto-mar desde o dia 10 de agosto, visto que estava em manobras de treino. Como já dito, o acidente ocorreu no dia 12.
Outro ponto a ser observado é o perigo nuclear dos reatores. Um dos operadores evitou o que poderia ser uma tragédia sem precedentes ao ativar as varetas de controle que se chocam com o núcleo dos reatores. O perigo nuclear está resolvido; resta agora o controle das panes e a sobrevivência dos homens restantes a bordo.
Alguns personagens tiveram seus nomes mudados. Mikhail (Matthias Schoenaerts) é a personificação de Dmitri Kolesnikov, o primeiro corpo a ser retirado do submarino no dia 21 de agosto, nove dias após o acidente. Ele deixou uma carta para sua esposa (estavam recém-casados), o que leva a crer que Mikhail e Anton (August Diehl) são personagens que incorporam partes da vida e comportamento do verdadeiro Dmitri.
Cabe relembrar que esse filme é baseado não apenas no acidente real, já que também bebeu na fonte do livro A Time do Die, do jornalista Robert Moore.
Conexões.
Uma situação tão drástica quanto o acidente do Kursk foi um verdadeiro tapa na cara dos russos e um alerta para o resto do mundo. Afinal, acidentes podem ocorrer, mas é preciso saber reconhecer as limitações, assumir os erros e buscar a todo custo o salvamento dos que sobreviveram.
E possível fazer várias conexões com essa história e outros fatos do mundo. Somos mesquinhos ao não valorizarmos à altura as pessoas que amamos; esquecemos que o tempo passa rápido, seja você um mendigo ou um Diplomata, o que implica em afirmar que é vital valorizar cada segundo de vida; a burocracia em excesso é um veneno que mata, ainda que na maioria das vezes lentamente; agradeça a cada novo dia de vida, pois ninguém sabe se haverá outro.
O roteiro apresenta um elemento físico que liga o início da trama ao seu fim, algo que serviu para dar alegria no começo da história e, ao final, trouxe esperança e uma clara demonstração de respeito à memória.
Nota final.
A parte técnica do filme é surpreendente por seu apuro técnico e por buscar apresentar algo o mais próximo possível daquilo que realmente ocorreu, obviamente guardados os limites por não haver uma “caixa preta” ou relatos exatos do longo período de sofrimento dos sobreviventes. No tocante à direção, o cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg mostra talento e coerência ao não focar apenas no plano emocional da trama, mas também focar nas polêmicas ações do governo russo que, infelizmente, resultaram na morte dos 23 marinheiros.
Uma obra feita com extremo respeito aos que morreram em missão, além de um alerta sobre os males oriundos da burocracia, da política e da desconfiança. Vivi por anos embarcado e sei o quanto a união é vital para que a vida a bordo seja menos árdua. São sacrifícios incontáveis para que façamos jus à farda e a tudo que ela representa. Assim, compreendo a união e a força deste grupo de homens que lutou até o último segundo por suas vidas, porém sentiram-se orgulhosos de partir ao lado dos companheiros de batalha. Há honra para eles, mesmo que a morte tenha, por fim, vencido.
Com cenas memoráveis, drama em doses corretas e com um roteiro digno, Kursk – A Última Missão é uma homenagem aos homens do mar que lá pereceram. O mundo não os esquecerá… assim como jamais apagará da história o fato de que o orgulho e o temor às outras nações do mundo levaram seus superiores a ignorar toda a ajuda ofertada. Que eles descansem em paz…