Qual o limite do dever de um filho para com seus pais? Como prosseguir com a própria vida quando a velhice e as doenças atingem aquele que você mais ama? Qual o real impacto do Alzheimer na vida de uma pessoa? Essas são as principais perguntas no longa-metragem “Meu Pai”, obra que rendeu a Anthony Hopkins o Oscar de melhor ator de 2021.
O filme também recebeu o Oscar de melhor roteiro adaptado. Para os que ainda não estão cientes, ele é baseado na peça teatral Le Père, de Florian Zeller.
E antes de prosseguir nesse review, peço que assistam ao trailer e reflitam sobre dois pontos: a importância daqueles que amamos e o quanto pode ser triste vê-los degradar.
Em nome do pai.
O filme é uma obra poética, triste e realista sobre uma doença que atinge milhões de pessoas no mundo, o Alzheimer. Mais do que isso, somos introduzidos na vida também daqueles que precisam cuidar dessas pessoas. Homens e mulheres que tiveram vidas produtivas, amaram, deram o melhor de si, eram, enfim, seres humanos plenos, mas que foram gradualmente sendo reduzidos por causa de uma doença cruel.
A trama aborda a trajetória da evolução dessa doença em um senhor chamado Anthony (interpretado com maestria por Anthony Hopkins). Anthony sofre por ter Alzheimer. Sua filha, Anne (Olivia Colman) tem a difícil tarefa de cuidar do pai (ao custo da própria vida pessoal), visto que ele tem lapsos de memória e confusões mentais assombrosas.
O primeiro impacto dessa trama para o espectador é o de causar choque. Nós, o público, não conseguimos nos situar pois somos sugados para todo o caos mental de Anthony que sofre por não conseguir reconhecer a própria filha, tem lapsos temporais absurdos e não vê a passagem do tempo como a vemos. É uma situação triste e impactante.
Eu perdi meu pai muito, muito cedo. Entretanto, daria tudo para tê-lo ao meu lado. Agora imaginem que esse desejo fosse realizado e estivéssemos novamente juntos. Só há um porém: ele não me reconhece, ele me acusa de tentar tomar dele seus patrimônios, me acusa de ser um manipulador que deseja apenas aguardar sua morte para ter o que ele construiu ao longo do anos. Acreditem, há coisas que podem ser tão ou mais devastadoras que a morte…
Há cenas desse filme que me destruíram emocionalmente, seja por não ter mais meu pai ao meu lado, seja por me pôr no lugar de Anthony que magoa quem mais o ama sem saber. Isso é assustador.
O incômodo que esse filme provoca é de um brilhantismo ímpar. A cronologia não é aquela à qual estamos acostumados; ela segue a mente de Anthony, algo que pode ser muito confuso e provocar mal estar em que assiste, tamanha é a veracidade nas cenas.
Alzheimer.
A atuação de Anthony Hopkins e o roteiro impecável de Florian Zeller (também diretor) e de Christopher Hampton conduzem o espectador por uma viagem dolorosa. Eles conseguem nos fazer compreender o quanto pode ser árdua a tarefa de acompanhar o fim da vida de alguém que amamos. Por se tratar de uma doença degenerativa e progressiva. Mesmo com o uso de medicamentos, as sequelas e a perda da memória e outras funções cerebrais são irrefreáveis. Por tal, um filho ou outro que cuide de alguém com Alzheimer sabe que terá muitos entraves nessa tarefa. Sendo justo e franco, em alguns casos isso pode ser uma condenação.
Por favor, não me julgue mal. Como disse mais acima, eu daria tudo para ter mais alguns momentos ao lado de meu pai. O porém (sempre existe um) é o medo de passar por aquilo que Anne sofre ao longo do filme. Eu sinto saudades de meu pai; ela sente a dor de tê-lo e não tê-lo, uma convivência que beira a loucura, uma relação onde a dor é quase constante, onde as poucas alegrias não conseguem minimizar a perda futura e o sofrimento presente.
Memórias.
Uma reflexão muito pertinente neste lindo e dramático longa-metragem diz respeito às memórias. Enquanto Anthony perde-as gradualmente, Anne revive tudo que passou com o pai, um doloroso e angustiante exercício provocado por cada ausência dele. Ela pode até não querer, mas é inevitável reviver o auge de seu pai quando se está diante de uma versão decrépita dele. Verdadeiramente, esta é uma missão que está muito próxima da linha do castigo, já que nenhum filho deveria passar por tamanha provação.
Algumas das fugas (vou chamar assim os lapsos de memória) de Anthony são bem parecidas com o que vi na HQ e no longa de animação Rugas, obra do fantástico Paco Roca.
Dores compartilhadas.
Ser o responsável por alguém com algo grave como o Alzheimer é uma tarefa hercúlea. Não se trata de dedicar um pouco de atenção. Não se trata de ter um tempo para isso. Trata-se, na verdade, de um martírio que ganha intensidade conforme o ente querido perde a memória e algumas capacidades físicas. Trata-se de entregar uma parte da própria sanidade em prol dos cuidados por essa pessoa. Trata-se, ainda, de antecipar um futuro caótico, enquanto se vive um presente que afeta não só a si como aqueles que lhe são próximos.
A tristeza que esse filme passa é indescritível. O simples exercício de se pôr no lugar de Anne é inimaginável. Não vou sequer supor como é ser um Anthony, como é ter uma mente onde tudo que foi importante está vagarosamente sendo apagado.
Memento Mori.
Não há como fugir do tempo. Há, claro, formas de melhorar essa passagem, o que não significa que é possível freá-lo. Do mesmo modo, o Alzheimer é um inimigo paciente, capaz de minar as forças de suas vítimas em leves doses e de forma ininterrupta. É isso que vemos em cada frame de Meu Pai: o definhamento de um indivíduo cujas glórias estão sendo esquecidas e apagadas por ele mesmo. É uma morte em vida. Algo que afeta o doente e todos que tentam auxiliá-lo nessa difícil jornada.
O Memento Mori é um conceito que encara a morte como algo natural e inevitável. Estamos – em uma visão macro – prontos para a morte, mesmo que não saibamos. Ela é muito mais que um conceito. Ela é uma presença que nos marca desde a mais tenra idade quando perdemos um animal de estimação, um parente, amigo ou pessoa próxima. A morte está em cada página de jornal, nos romances, nas novelas e filmes. Está próxima de tudo aquilo que tem vida.
Parafraseando Ariano Suassuna em sua obra O Alto da Compadecida:
“É verdade, morreu. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo que é ser vivo num só rebanho de condenados, porque tudo que é vivo morre!”
Só há um porém que o escritor esqueceu: a morte real é dolorosa, porém finita. Ela encerra um ciclo que o tempo fará com que seja menos doloroso. O Alzheimer, por sua vez, é um ciclo de perdas, dor e tristeza, uma morte em vida cujos efeitos devastadores impactam o doente e todos ao seu redor.
Atuações.
Não há dúvidas de que os destaques são Anthony Hopkins e Olivia Colman. O restante do elenco é de um brilhantismo único, claro, e inclui nomes como Imogen Poots, Rufus Sewell, Mark Gatiss, Evie Wray e Ayesha Dharker, mas esses dois atores dão alma à trama. Há um compartilhamento da dor, uma entrega aos papéis capaz de nos colocar quase como parentes, pessoas que só observam por serem incapazes de mudar uma única vírgula nessa trama dolorosa.
Conduzidos pelo diretor e o roteiro magníficos, eles nos entregam uma história tocante, triste e realista, um alerta sobre essa doença que rouba a essência de suas vítimas.
Ao final da trama, garanto que lágrimas estarão nas faces dos espectadores. É humanamente impossível não se compadecer da trajetória de Anthony e sua filha Anne. Decisões serão tomadas, destinos serão traçados e tudo isso será envolto por uma trilha de perda, dor e amor.
Meu Pai foi uma das mais intensas experiências cinematográficas que já vivi. Sinto-me honrado por estar frente a uma obra que já é um clássico e uma obra-prima da Sétima Arte.
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