Assim que comecei a assistir ao longa-metragem O Poço (El Hoyo), tive a impressão de que o filme seria um “similar” ao filme Cubo (Cube – 1997), mas essa sensação passa muito rápido. Apesar do clima claustrofóbico de ambas as produções, O Poço tem uma vertente bem mais incômoda e impactante para o espectador, sobretudo do ponto de vista psicológico.
Vejam o trailer para terem uma melhor ideia sobre o que estou falando. Após isso, continuaremos na análise desse surpreendente filme.
A narrativa começa de forma simples, porém enigmática.
Conhecemos um homem chamado Goreng (Iván Massagué) que está em uma prisão diferente, um fosso gigantesco que mantém dois prisioneiros (ou voluntários) por nível/andar. Não há aparente forma de fuga e o clima se torna mais tenso quando surge na tela o companheiro de cárcere de Goreng, um velho chamado Trimagasi (Zorion Eguileor), homem rude, aparentemente cruel e que mostra ter um bom conhecimento sobre o lugar onde ele e seu parceiro de “cela” estão.
Trimagasi é prático em tudo que faz. Despreza os que estão nos níveis abaixo (inclusive ele os humilha), não mostra respeito pelos que estão acima e tem a aparência rude reforçada por suas palavras ásperas. A história de vida dele é revelada gradualmente, assim como gradualmente acompanhamos o desenvolvimento da relação entre ele e Goreng. Há pontos onde ambos concordam, outros onde discordam, mas fica “óbvio” que precisam colaborar entre si para sobreviver ao período de um mês no qual serão obrigados a conviver.
Aliás, o período de um mês é o estipulado pela administração da prisão para observar e decidir onde o preso acordará após isso. Sim, é possível que um preso do nível 48 vá para o nível 13, assim como também é possível que ele desperte no nível 110. Tudo dependerá de sua desenvoltura nos 30 dias de cárcere. Mas o que realmente conta para essa oscilação entre níveis? Verdadeiramente, tanto os participantes do Poço quanto nós, espectadores, ficamos sempre em dúvida acerca do que é determinante para as mudanças.
Angústia.
Não há como negar que adquirimos uma simpatia por Goreng. Ele é um dos poucos no Poço que mostra ter uma certa base moral, mas o fato é que não sabemos quanto tempo durará sua vontade diante das desgraças que acontecem na prisão.
Para ilustrar o quanto de sofrimento é possível passar, basta imaginar que sempre há suicídios (pessoas que se jogam no gigantesco fosso), alguns se matam, o choro é uma constante e é possível ouvi-lo a todo instante; a comida pode chegar vomitada ou defecada por pessoas que abandonaram a mínima noção de humanidade, há castigos para a desobediência e a privacidade é uma lenda.
Em um ambiente opressor e terrível como esse, provavelmente até o mais forte ser humano sucumbirá à depressão. Isso explica os citados suicídios e homicídios.
Estar enclausurado pode ser algo muito ruim, porém isso pode ser ainda pior quando estamos com alguém que tememos ou odiamos ou não confiamos.
Tudo colabora para que a angústia englobe os prisioneiros. Tudo serve para afastar a decência e trazer à tona aquilo que uma pessoa pode ter de pior. Em suma, o maior monstro dessa trama ainda é o ser humano.
Decadência.
Goreng passa por alguns níveis. Ele conhece novas pessoas e descobre que existe uma mulher chamada Miharu (Alexandra Masangkay) que transita livremente entre os níveis. Essa mulher é um enigma quase indecifrável, uma força da natureza que trafega entre tudo aquilo que há de pior na humanidade, já que ao subir e descer os níveis ela tem a terrível oportunidade de confrontar com as mentes e índoles mais estranhas, mesquinhas e perversas, sobretudo nos níveis mais baixos onde, infelizmente, a comida praticamente não chega.
A motivação dessa mulher é algo incompreensível para a maioria, principalmente se levarmos em conta as atrocidades que surgem com o decorrer do filme. Ela tem em si uma esperança que pouquíssimas pessoas manteriam.
Goreng, infelizmente, vê também o pior da humanidade. Ele muda de cela e não compreende os motivos para que tenham mudado seu nível para baixo ou para cima. Quais os motivos para tantos castigos? Quais os motivos que o levaram a conceder permissão para tamanha tortura? Isso só estará explicado àquele que tiver estômago para permanecer ao lado dele até o último segundo do longa-metragem.
ATENÇÃO! A PARTIR DE
AGORA, SPOILERS!!!!
A trama toda foca na comida e sua função agregadora ou desagregadora, desde seu preparo até chegar ao último nível da prisão. A alimentação não só garante a sobrevivência dos prisioneiros, ela garante a transformação de pessoas de aparente boa índole (como Goreng) em seres movidos pelo consumo, incapazes de compaixão por seus semelhantes que “estão inferiores”. Esse alimento tem o mesmo papel que o dinheiro em nossa sociedade, capaz de influenciar uma pessoa a sentir-se superior a outra, pura e simplesmente pelo desnivelamento social. Em “O Poço”, comer é status. Os primeiros níveis permitem que as duplas se alimentem como verdadeiros sheiks, enquanto os dos últimos níveis estão sobrevivendo à base de água, restos (se houver) e até mesmo o próprio companheiro, esteja ele podre ou não.
A fome é a mola propulsora para o caos, ainda que alguns indivíduos sejam maus por vontade própria e até mesmo por prazer. Isso, contudo, não significa que a fome deva existir na prisão. Na verdade, há comida para todos desde que ela seja distribuída de forma igual e justa. Ao comer uma única fruta a mais, um indivíduo pode condenar outro à fome.
O roteiro tenso e cheio de parábolas escrito por David Desola e Pedro Rivero serve para ilustrar a desigualdade social mundial, onde muitos têm pouco e poucos têm muito. A balança de distribuição de rendas mostra que 26 pessoas detêm mais dinheiro que 60% da população da Terra. A fome do mundo poderia ser extinta caso houvesse mais justiça e uma distribuição justa de rendas para todos, algo que – logicamente – existe apenas no campo das ideias.
Outro fatos interessantíssimos na obra estão nas mensagens passadas durante toda a história:
a) Homens e mulheres podem mostrar sua verdadeira índole e crueldade quando diante do desespero;
b) A desigualdade é fator gerador de caos, morte e corrupção;
c) O desprezo pelos menos privilegiados é uma das fontes de desigualdade;
d) A falta de empatia pelo próximo é algo que está mais presente do que gostaríamos em nossas sociedades;
e) O poder corrompe;
f) O amor ao próximo não é algo a ser desprezado, já que ele pode salvar vidas;
g) As classes mais altas não enxergam os que estão abaixo, pois a comodidade de suas vidas acaba por torná-los insensíveis às desgraças alheias;
h) A esperança reside nas crianças;
i) A fome é a porta para o desespero;
j) É fácil rir e esquecer dos problemas dos outros quando se está em situação privilegiada;
k) Às vezes buscamos, mesmo que inconscientemente, o castigo através de nossas ações;
l) A vida é feita de altos e baixos;
m) Quando estiver em posição privilegiada, lembre-se de quem não está;
n) Nossos atos jamais passarão sem que alguém julgue-os;
o) Valorize e viva cada pequeno momento de alegria;
p) Suas ações podem persegui-lo até seu último momento de vida;
q) O que não presta para você pode ser o banquete de outro;
r) Alguns castigos são realmente necessários para que reflitamos sobre nossas ações;
s) Nosso tempo já é curto neste planeta, viva-o plenamente e do jeito correto;
t) O dia de amanhã servirá para dizer se o ontem foi realmente ruim, assim como o dia depois de amanhã será parâmetro para julgar seu antecessor;
u) O futuro a Deus pertence, mas é vital que faça tudo para que ele seja o melhor possível;
v) As facilidades corrompem;
w) As dificuldades também podem corromper, porém é mais fácil crescer nelas e através dos aprendizados que elas escondem;
x) Nada está tão ruim que não possa piorar;
y) Sorrisos podem esconder a loucura; e
z) Seus instintos podem conduzi-lo à salvação ou à desgraça.
Teorias.
A prisão tem 333 níveis onde, literalmente, as pessoas são punidas incessantemente. Como há duas pessoas por nível, temos 666 indivíduos que pagam por erros que, em alguns casos, sequer desconfiam. A configuração de tormentos, miséria, dor, fome e loucura, associada ao número 666 pode indicar que se trata do bíblico local chamado Purgatório, destinado a purificar pessoas ou, caso ofereçam resistência a essa purificação, garantir a ida ao verdadeiro Inferno.
Goreng é uma das personagens que reforça essa teoria. Ele ingressa no Poço por “livre vontade”, mas jamais consegue se lembrar dos reais motivos para lá estar. Ele teve a vontade e os esforços para melhorar como humano, mas essas tentativas foram duramente derrubadas por ondas indescritíveis de sofrimento, solidão, medo e castigo.
A comida é o condutor entre as pessoas. Caso todos fossem bons e justos, ela chegaria ao final do poço e todos estariam saciados. Entretanto, a gula e o desprezo pelo sofrimento de outros fizeram com que muitos morressem diante da ausência de algo para comer.
A filha de Miharu é uma dúvida que nos deixa entre duas questões: ela existe e é o aviso para os homens do andar mais alto de que ainda há esperança na humanidade ou, ainda, ela é uma ilusão implantada com o intuito de testar cada indivíduo no Poço.
Os voluntários a permanecer no Poço seriam os humanos que cometeram crimes e pecados que os conduziram para o Purgatório, fato que daria base para o desconhecimento dos erros cometidos para estarem lá.
A obra também seria uma crítica brutal ao desperdício de alimentos e à mesquinhez dos que estão na parte mais alta da pirâmide social. Ela ainda mostra que o maior monstro que pode existir em qualquer mundo ou realidade é o próprio ser humano.
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